domingo, 1 de março de 2009

Prata da Casa - "Una Canción"

Una Canción

(Para Rayssa Mesquita)

Voz de cães, latidos de homem… Era noite de chuva. Solidão e chuva. Só. Apenas a tristeza é aquática nesta terra sem litoral. Cansado de tanta janela, saí de casa com fome. Não sabia, no bem da verdade, se era de fato fome… Mas, se não fosse, era algo muito próximo de uma necessidade de mastigar o tempo, as vozes, os cães, os latidos, os homens, a noite, a chuva, a solidão, a chuva, o só, o apenas, a tristeza, o aquático, a terra, o sem, o litoral, o cansaço, as janelas, as saídas, as casas, a fome, o saber, o bem, a verdade, o fato, a fome… Saí debaixo de chuva, e tristeza, e solidão, e noite… Tem de galinha? Com coca-cola… zero, por favor! Comi. Comi de encher a boca, de estufar o estomago, mas não se foi a fome do aqui-dentro mais dentro que a boca do estômago…
Sentaram-se, diante de minha só figura satisfeita de fome, uma flauta e uma voz. Cresceu-me a fome, uma fome mais faminta que os esfomeados de sonho e dignidade. No meio de tanto som de chuva e de tanta comida inútil, uma flauta e uma voz tomaram os assentos a minha frente. Busquei outros barulhos, sons, chuvas, coisas a serem comidas como quem busca tapar os ouvidos… Abri a bolsa que levara comigo como quem rói unhas e apanhei o primeiro livro que minha mão tocou naquela misteriosa e escura caverna portátil. Um livro! Essa voz que tudo calará um dia, essa fome maior que a minha, esse alimento que transcende o pão, o corpo, a hóstia… um livro: “Veinte poemas de amor y una canción desesperada”. Até tu, Neruda? Eu aqui, cercado de planalto, fome, agora flauta e canção, e, como se não bastasse ser sem litoral e não ter lembrança de litoral diferente desta chuva pluvimedonha, me vens tu, poeta, me falar de amor, canção e desespero? Logo tu, que tens a te cercar os dois lados de mim mesmo: teus Andes, este planalto; teu Pacífico, meu litoral?…

“Fui solo como un túnel. De mí huían los pájaros
y en mí la noche entraba su invasión poderosa.
Para sobrevivirme te forjé como una arma,
como una flecha en mi arco, como una piedra en mi honda.

Pero cae la hora de la venganza, y te amo.”

Basta, Neruda! Por que não te deténs a ti, tu que devias aplacar minha fome e aplacas apenas meus ouvidos míopes e meus olhos já tão surdos? A flauta abriu uma pasta preta, dela saltaram folhas pautadas, pentagramas. E, como se o metal, o ar, o papel tivessem vida, nasceu de seus pulmões um sopro, vida, espírito, um sutil Mozart… era alto, com porte de homem sério, semibreve, ria pouco, tinha ar sereno: músico. Tocava Mozart. A voz lia a partitura atenta, a flauta tocava. Era uma voz vestida à espanhola, olhos amendoados, rosto geométrico, uma dama de Avignon, Carmen, cabelos negros, boca aguda, semicolcheia: soprano. Começou a dizer uma tímida Zerlina:
Vorrei, e non vorrei,
Mi trema un poco il cor
Felice, è vero, sarei,
Ma può burlami ancor.

Surpreso de tanto som, mal tive tempo de me deter surpreso de mim mesmo que cantarolava com ela em dueto:

Vieni, mio bel diletto!

Mi fa pietà Masetto.

Io cangierò tua sorte!

Presto non son più forte!
non son più forte!
non son più forte!

Vieni, vieni!

Là ci darem la ma… Ela olhou-me por debaixo dos olhos! Ele também, menos simpático que ela. Estanquei olhar e canto. Voltei a ler rápido:

“Cuerpo de mujer mía, persistiré en tu gracia”

Vorrei e non vorrei

“¡Mi sed, mi ansia sin limite, mi camino indeciso!”

Mi trema un poco il cor

“Oscuros canses donde la sed eterna sigue,
y la fatiga sigue, y el dolor infinito”

Não percebi de pronto que já chorava àquela altura. Não de desespero, mas como um menino faminto, numa viela suja e fria, que sente no palato o vapor de uma sopinha quente… Ao redor, ouvi som de água, mas não era da chuva… notei que todos se levantavam interessados em tanto som de mar nos cimos do planalto. A terra vermelha encantava-se de brancura e ficava cada vez mais alva e leve de voar com o vento. Dunas se formavam no horizonte. A noite amanhecia com sol de tarde. Era meio dia. As crianças corriam, pulavam n’água, chamavam seus pais para uma brincadeira na praia que trouxe o dia. Os cumes das colinas do planalto eram ilhas que todos podiam visitar. As ondas do pacífico oceano molhavam meus pés e o meu sal aquático foi se encontrar com o sal deste litoral que, agora, milagrosamente havia e era tudo ao meu redor e eu, todo litoral…
A flauta e a voz se despediram do medo em forma de gato que se aninhara em minha cadeira com medo da água e partiram com som de Mozart:

Andiam, andiam, mio bene
A ristorar le pene
D’un innocente amor…

e eu soube, naquele momento, que eu não estava só e não havia chuva no mundo se não houvesse som de chuva nas minhas janelas… eu estava apenas com fome – uma fome faminta mais profunda que minha boca e a boca do meu estomago… Neruda, en mis manos, llenas de sal, me decía, sin voz, de mi soledad (olvidada) y de mi amor (siempre conmigo):

“Me gustas quando callas porqué estás como ausente,
y me oyes de lejos, y mi voz no te toca”


Marcos de Andrade Filho
Brasília, 30 de dezembro de 2008.

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