terça-feira, 3 de março de 2009

Prata da casa: "Calor humano"

Abraço porque querer abraçar.
Sentir a força dos braços quebrarem.
No aperto das almas.
No espelho cego.
Na fonte de água.
Na cor da nuvem.
Abraço para ter em braços.
A luz da cor.
A cor do desejo.
Abraço meus próprios braços.
Por falta de abraço a quem dá.


Raphael Franck

Prata da Casa: "A cor da flor que sangra"

Há sombra de você em flor.
E fechar e deixar-se calar.
Não há quem beijar sua pétala.
Flora.
Concorda em seu íntimo amar.
Quem nunca soube com você retribuir.
A sombra de um beijo negado.
Em íntimo amor renegado.
É estranho dizer a um ser não amado:
Dê-me sua pétala para me manter em você guardado.


Raphael Franck

domingo, 1 de março de 2009

Prata da Casa - "Una Canción"

Una Canción

(Para Rayssa Mesquita)

Voz de cães, latidos de homem… Era noite de chuva. Solidão e chuva. Só. Apenas a tristeza é aquática nesta terra sem litoral. Cansado de tanta janela, saí de casa com fome. Não sabia, no bem da verdade, se era de fato fome… Mas, se não fosse, era algo muito próximo de uma necessidade de mastigar o tempo, as vozes, os cães, os latidos, os homens, a noite, a chuva, a solidão, a chuva, o só, o apenas, a tristeza, o aquático, a terra, o sem, o litoral, o cansaço, as janelas, as saídas, as casas, a fome, o saber, o bem, a verdade, o fato, a fome… Saí debaixo de chuva, e tristeza, e solidão, e noite… Tem de galinha? Com coca-cola… zero, por favor! Comi. Comi de encher a boca, de estufar o estomago, mas não se foi a fome do aqui-dentro mais dentro que a boca do estômago…
Sentaram-se, diante de minha só figura satisfeita de fome, uma flauta e uma voz. Cresceu-me a fome, uma fome mais faminta que os esfomeados de sonho e dignidade. No meio de tanto som de chuva e de tanta comida inútil, uma flauta e uma voz tomaram os assentos a minha frente. Busquei outros barulhos, sons, chuvas, coisas a serem comidas como quem busca tapar os ouvidos… Abri a bolsa que levara comigo como quem rói unhas e apanhei o primeiro livro que minha mão tocou naquela misteriosa e escura caverna portátil. Um livro! Essa voz que tudo calará um dia, essa fome maior que a minha, esse alimento que transcende o pão, o corpo, a hóstia… um livro: “Veinte poemas de amor y una canción desesperada”. Até tu, Neruda? Eu aqui, cercado de planalto, fome, agora flauta e canção, e, como se não bastasse ser sem litoral e não ter lembrança de litoral diferente desta chuva pluvimedonha, me vens tu, poeta, me falar de amor, canção e desespero? Logo tu, que tens a te cercar os dois lados de mim mesmo: teus Andes, este planalto; teu Pacífico, meu litoral?…

“Fui solo como un túnel. De mí huían los pájaros
y en mí la noche entraba su invasión poderosa.
Para sobrevivirme te forjé como una arma,
como una flecha en mi arco, como una piedra en mi honda.

Pero cae la hora de la venganza, y te amo.”

Basta, Neruda! Por que não te deténs a ti, tu que devias aplacar minha fome e aplacas apenas meus ouvidos míopes e meus olhos já tão surdos? A flauta abriu uma pasta preta, dela saltaram folhas pautadas, pentagramas. E, como se o metal, o ar, o papel tivessem vida, nasceu de seus pulmões um sopro, vida, espírito, um sutil Mozart… era alto, com porte de homem sério, semibreve, ria pouco, tinha ar sereno: músico. Tocava Mozart. A voz lia a partitura atenta, a flauta tocava. Era uma voz vestida à espanhola, olhos amendoados, rosto geométrico, uma dama de Avignon, Carmen, cabelos negros, boca aguda, semicolcheia: soprano. Começou a dizer uma tímida Zerlina:
Vorrei, e non vorrei,
Mi trema un poco il cor
Felice, è vero, sarei,
Ma può burlami ancor.

Surpreso de tanto som, mal tive tempo de me deter surpreso de mim mesmo que cantarolava com ela em dueto:

Vieni, mio bel diletto!

Mi fa pietà Masetto.

Io cangierò tua sorte!

Presto non son più forte!
non son più forte!
non son più forte!

Vieni, vieni!

Là ci darem la ma… Ela olhou-me por debaixo dos olhos! Ele também, menos simpático que ela. Estanquei olhar e canto. Voltei a ler rápido:

“Cuerpo de mujer mía, persistiré en tu gracia”

Vorrei e non vorrei

“¡Mi sed, mi ansia sin limite, mi camino indeciso!”

Mi trema un poco il cor

“Oscuros canses donde la sed eterna sigue,
y la fatiga sigue, y el dolor infinito”

Não percebi de pronto que já chorava àquela altura. Não de desespero, mas como um menino faminto, numa viela suja e fria, que sente no palato o vapor de uma sopinha quente… Ao redor, ouvi som de água, mas não era da chuva… notei que todos se levantavam interessados em tanto som de mar nos cimos do planalto. A terra vermelha encantava-se de brancura e ficava cada vez mais alva e leve de voar com o vento. Dunas se formavam no horizonte. A noite amanhecia com sol de tarde. Era meio dia. As crianças corriam, pulavam n’água, chamavam seus pais para uma brincadeira na praia que trouxe o dia. Os cumes das colinas do planalto eram ilhas que todos podiam visitar. As ondas do pacífico oceano molhavam meus pés e o meu sal aquático foi se encontrar com o sal deste litoral que, agora, milagrosamente havia e era tudo ao meu redor e eu, todo litoral…
A flauta e a voz se despediram do medo em forma de gato que se aninhara em minha cadeira com medo da água e partiram com som de Mozart:

Andiam, andiam, mio bene
A ristorar le pene
D’un innocente amor…

e eu soube, naquele momento, que eu não estava só e não havia chuva no mundo se não houvesse som de chuva nas minhas janelas… eu estava apenas com fome – uma fome faminta mais profunda que minha boca e a boca do meu estomago… Neruda, en mis manos, llenas de sal, me decía, sin voz, de mi soledad (olvidada) y de mi amor (siempre conmigo):

“Me gustas quando callas porqué estás como ausente,
y me oyes de lejos, y mi voz no te toca”


Marcos de Andrade Filho
Brasília, 30 de dezembro de 2008.

Prata da Casa: Caosmos

Em vagões, metrôs, esquinas, bares, apartamentos, janelas... em qualquer lugar do passado, há 10 ou 100 anos atrás, ou agorinha mesmo, não tem nem 15 minutos! Tanto faz... tempo e espaço é o que menos importa nessas horas! Ela vem sorrateira quase rastejando. Possui a qualquer um, em qualquer lugar, seja quem for... é voluptuosa, embriagante; os olhos piscam só por necessidade, mas a vontade mesmo é de ficarem petrificados, semicerrados... a pupila quase que dilata quando num arroubo ela nos leva... não tem forma, porque forma é casca e ela é essência! Não é nirvana, porque ela não nos purga de sofrimento algum... é só um estado que pode durar frações de segundos ou uma eternidade... Enfim, não é nada não, só me conveio chamá-la de “ela” para ter como chamá-la; não é como a chuva que chove sozinha, sem ter um sujeito que a execute; ela precisava de um sujeito e eu a dei: Ela! Estava eu num desses instantes em que a gente sai do corpo, parecendo flutuar em algum lugar inóspito... Nesse instante ela já tinha chegado, mas eu não havia percebido, porque naquele momento eu não tinha consciência nem da minha própria existência. Foi assim que tudo começou... Bem, para se ter um referencial, digamos que eu estava numa dessas conduções que a gente toma todo dia, para fazer o que tem que ser feito, com hora marcada e local certo... tudo o que eu via rotineiramente com minha visão automatizada passou a ter um novo sentido. Meus olhos estavam envolvidos em lágrimas. Não por emoção! Mas por ofuscamento mesmo. Como se tivessem me retirado uma venda dos olhos, eu vi o mundo pela primeira vez... Tudo parecia ter sua forma original! Não era cópia de cópia! Era primordial, com cores muito nítidas e fortes, como se tivesse acabado de sair de uma película e tinha... Era muito para os meus olhos! Foi a primeira vez que eu enxerguei... Era como ser envolvida por um misto de medo e deslumbramento... E aquelas pessoas ao meu redor? Tudo muito estranho... derrepente elas não eram só “pessoas”; em cada fisionomia enxerguei medos, amarguras, lembranças, esperanças, sonhos. Era como um labirinto em forma de “gente”, cada um possuía diversas camadas que iam criando profundidade tridimensional... Não tinha fim, era tudo muito obscuro, inefável! Olhei a janela... Ah, a janela não é tridimensional como as pessoas, ela não tem profundidade, mas muito me foi útil. Por detrás da janela vi as imagens passando vagarosamente, árvores mudas, luzes elétricas como velas em procissão. Pó e escuridão. Pó e escuridão... Me perdi na escuridão e eu era pó também! Tudo era pó ao meu redor... Tive uma boa sensação, não carregava mais o peso do corpo, do embuço ou seja lá o que for. Eu simplesmente pairava sobre o ar, como quando nosso corpo flutua sobre a água. Olhei distraída para a janela e vi o reflexo das imagens distorcidas atrás de mim, como num espelho fantasmagórico, com meu invólucro ausente. Ao olhar fixamente aquela tela psicodélica, senti algo inenarrável, uma sensação de onipresença! Vi a junção das duas dimensões. Passado e futuro juntos. Eu o presente? Estávamos todos no mesmo barco, todos-um-só. Nada se dividia... Substância homogênea! Por um instante a janela foi a metáfora de uma vida, logo foi descartada, pois era só mais uma casca e dessas existem diversas, é só escolher. Olhei-a fixamente e comecei a imaginar as pinceladas do seu processo de criação, em alguns pontos da tela o pincel parecia já exaurido, em outros haviam buracos... não conseguia ver bem. Talvez fosse o futuro, e o futuro é incerto, como todos bem sabem! E o que é mesmo o futuro senão o presente que acabou de passar? O quadro não era obsoleto, nem uma obra de arte, porque as coisas não são melhores nem piores, elas apenas são. Finalmente olhei para o céu, ele parecia maior do que de costume... É como quando a gente cresce e volta em um lugar de quando éramos criança e temos a sensação de que o lugar era bem maior; nesse caso aconteceu exatamente o inverso! Ela já tinha ido embora subitamente... Não sei se naquele instante eu acordei, ou se eu estava acordada e agora durmo. Vi a luz das estrelas supostamente mortas; a luz só chegou muito depois... A melancolia diária bateu bem mais forte. E as coisas começaram a voltar aos seus devidos lugares. Passado e futuro. Céu e terra... Ainda havia vida no pó!